Entrou em vigor, no dia 10 de março, a
Lei 13.104/2015, que trata do feminicídio. O Brasil foi o 16º país da
América Latina a prever tal figura.
As três importantes novidades para o direito penal são as seguintes:
I. Alterou o art. 121 do Código Penal
para incluir como circunstância qualificadora do homicídio o
feminicídio, descrevendo seus requisitos típicos;
II. Criou uma causa de aumento de pena (um terço até a metade) para os casos em que o feminicídio tenha sido praticado:
- durante a gestação
- nos três meses posteriores ao parto
- contra pessoa menor de quatorze anos
- contra pessoa maior de sessenta anos
- contra pessoa deficiência
- na presença de descendente da vítima
- na presença de ascendente da vítima
III. Incluiu o feminicídio no rol dos crimes hediondos trazidos pela Lei 8.072/90.
Vejamos cada uma delas:
I – Feminicídio como nova qualificadora do homicídio e seus requisitos típicos
De acordo com a novel Lei, passa a ser
homicídio qualificado a morte de mulher por razões de sexo feminino (CP,
art. 121, § 2º, VI). No § 2º-A do mesmo artigo, o Código Penal elenca
as situações que são consideradas como razões de condição do sexo
feminino: violência doméstica e familiar, menosprezo à condição de
mulher ou discriminação à condição de mulher.
Os requisitos típicos da nova qualificadora (feminicídio) são:
Homicídio qualificado
§ 2° Se o homicídio é cometido:
[...]
Feminicídio
VI – contra a mulher (1) por razões da condição de sexo feminino (2):
Pena: reclusão, de 12 a 30 anos.
§ 2°-A. Considera-se que a há razões de condição de sexo feminino (3) quando o crime envolve:
I – violência doméstica e familiar (4);
II – menosprezo (5) ou discriminação à condição de mulher (6).
(1) Sujeito passivo: mulher
A Lei do Feminicídio faz referência
expressa à vítima mulher. Tal também se dá no âmbito da Lei Maria da
Penha (LMP – Lei 11.340/2006). Quando se trata da aplicação da LMP, há
decisões jurisprudenciais e parte da doutrina que se posiciona no
sentido de aplica-la para situações que envolvem transexuais, travestis,
bem como relações homoafetivas masculinas. A LMP cuida primordialmente
de medidas protetivas. Nesse terreno, a analogia é válida para proteger
até mesmo o homem (nas relações homoafetivas).
No qualificadora do feminicídio, o
sujeito passivo é a mulher. Aqui não se admite analogia contra o réu.
Mulher se traduz num dado objetivo da natureza. Sua comprovação é
empírica e sensorial. De acordo com o art. 5°, par. ún., a Lei
11.340/2006 deve ser aplicada, independentemente de orientação sexual.
Na relação entre mulheres hetero ou transexual (sexo biológico não
correspondente à identidade de gênero; sexo masculino e identidade de
gênero feminina), caso haja violência baseada no gênero, pode
caracterizar o feminicídio. A aplicação da Lei Maria da Penha para
transexual masculino foi reconhecida na decisão oriunda da 1ª Vara
Criminal da Comarca de Anápolis, juíza Ana Cláudia Veloso Magalhães
(proc. n. 201103873908, TJGO).
No caso das relações homoafetivas
masculinas definitivamente não se aplicará a qualificadora. A lei falou
em mulher. Por analogia não podemos aplicar a lei penal contra o réu.
Não podemos admitir o feminicídio quando a vítima é um homem (ainda que
de orientação sexual distinta da sua qualidade masculina).
(2) e (3) Requisito normativo: “razões da condição de sexo feminino”
O Projeto que deu origem à Lei
13.104/2015 (PL 8305/2014) sofreu, pouco tempo antes de ser aprovado,
uma alteração: o vocábulo “gênero” foi substituído pela expressão
“condição de sexo feminino”.
Tal
alteração traz algum impacto interpretativo? Entendemos que não, já que a
expressão “por razões da condição de sexo feminino” vincula-se,
igualmente, a razões de gênero.
Perceba-se que o legislador não trouxe
uma qualificadora para a morte de mulheres. Se fosse assim bastaria ter
dito: “Se o crime é cometido contra a mulher”, sem utilizar a expressão
“por razões da condição de sexo feminino”.
Uma vez esclarecido que a qualificadora
não se refere a uma questão de sexo (categoria que pertence à biologia),
mas a uma questão de gênero (atinente à sociologia, padrões sociais do
papel que cada sexo desempenha) convém trazer algumas considerações
sobre o assunto.
De acordo com a Convenção Interamericana
Para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher,
“Convenção de Belém do Pará”, “a violência contra a mulher constitui
violação dos direitos humanos e liberdades fundamentais e limita total
ou parcialmente a observância, gozo e exercício de tais direitos e
liberdades”. Também ela “constitui ofensa contra a dignidade humana e é
manifestação das relações de poder historicamente desiguais entre
mulheres e homens.”
A violência de gênero envolve uma
determinação social dos papéis masculino e feminino. Toda sociedade pode
(e talvez até deva) atribuir diferentes papéis ao homem e à mulher. Até
aí tudo bem. O problema? O problema ocorre quando a tais papéis são
atribuídos pesos com importâncias diferenciadas. No caso da nossa
sociedade, os papéis masculinos são supervalorizados em detrimento dos
femininos.
Para Maria Amélia Teles e Mônica de
Melo, a violência de gênero representa “uma relação de poder de
dominação do homem e de submissão da mulher. Demonstra que os papéis
impostos às mulheres e aos homens, consolidados ao longo da história e
reforçados pelo patriarcado e sua ideologia, induzem relações violentas
entre os sexos.”
Em se tratando de controle da mulher,
essa violência incide quase como controle total, dada a situação de
afeto, intimidade, convivência (em muitos casos) e continuidade que
caracteriza a relação de poder desigual decorrente do sistema de
desigualdade de gêneros.
Os papéis sociais atribuídos a homens e a
mulheres são acompanhados de códigos de conduta introjetados pela
educação diferenciada que atribui o controle das circunstâncias ao
homem, o qual as administra com a participação das mulheres, o que tem
significado ditar-lhes rituais de entrega, contenção de vontades, recato
sexual, vida voltada a questões meramente domésticas, priorização da
maternidade. Resta tão desproporcional o equilíbrio de poder entre os
sexos, que sobra uma aparência de que não há interdependência, mas
hierarquia autoritária. Tal quadro cria condições para que o homem
sinta-se (e reste) legitimado a fazer uso da violência, e permite
compreender o que leva a mulher vítima da agressão a ficar muitas vezes
inerte, e, mesmo quando toma algum tipo de atitude, acabe por se
reconciliar com o companheiro agressor, após reiterados episódios de
violência. Pesquisa da Fundação Perseu Abramo conclui que é comum as
mulheres sofrerem agressões físicas, por parte do companheiro, por mais
de dez anos.
Diversos estudos demonstram que tal submissão decorre de condições
concretas (físicas, psicológicas, sociais e econômicas) a que a mulher
encontra-se submetida/enredada, exatamente por conta do papel que lhe é
atribuído socialmente.
Como bem adverte Léo Rosa de Andrade,
“nesse mundo dos homens, as mulheres foram postas para servir a casa dos
homens, parir para os homens, cuidar dos filhos dos homens. Os homens
repartiam entre si o controle sobre as mulheres, vigiando-as,
reprimindo-as, matando-as. As leis dos homens absolviam os homens de
tudo. As mulheres eram dos homens. Sumiam-se, inclusive, na adoção do
nome dos homens.”
(4) a (6) circunstâncias que caracterizam as “razões de condição de sexo feminino”
Para configurar feminicídio, como já
assinalamos, não basta que a vítima seja mulher. A morte tem que ocorrer
por “razões da condição de sexo feminino”. Elas foram elencadas no §
2º-A do art. 121 do Código Penal como sendo as seguintes: violência
doméstica e familiar contra a mulher, menosprezo à condição de mulher e
discriminação à condição de mulher. Vejamos cada uma delas:
a) Violência doméstica e familiar contra a mulher
A primeira das “razões da condição de
sexo feminino” trazida pela nova Lei refere-se ao fato de o crime
envolver “violência doméstica e familiar”.
A partir de uma interpretação
sistemática (que é aquela que busca uma exegese levando-se em
consideração o conjunto do ordenamento jurídico) chega-se à Lei Maria da
Penha e percebe-se que lá a expressão “violência doméstica e familiar” é
fartamente utilizada. Em seu art. 5º ela é conceituada como “qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial”.
Como se pode perceber, para que se
configure a violência doméstica e familiar justificadora da
qualificadora, faz-se imprescindível verificar a razão da agressão (se
baseada ou não no gênero).
A Lei Maria da Penha também traz o
contexto em que a violência doméstica e familiar baseada no gênero pode
se dar: âmbito da unidade doméstica, da família ou em qualquer relação
íntima de afeto (art. 5º, I a III).
Com essas informações, podemos concluir
que a violência doméstica e familiar que configura uma das razões da
condição de sexo feminino (art. 121, § II-A) e, portanto, feminicídio,
não se confunde com a violência ocorrida dentro da unidade doméstica ou
no âmbito familiar ou mesmo em uma relação íntima de afeto. Ou seja,
pode-se ter uma violência ocorrida no âmbito doméstico que envolva,
inclusive, uma relação familiar (violência do marido contra a mulher
dentro do lar do casal, por exemplo), mas que não configure uma
violência doméstica e familiar por razões da condição de sexo feminino
(Ex. marido que mata a mulher por questões vinculadas à dependência de
drogas). O componente necessário para que se possa falar de feminicídio,
portanto, como antes já se ressaltou, é a existência de uma violência
baseada no gênero (Ex.: marido que mata a mulher pelo fato de ela pedir a
separação).
Ainda levando em conta a interpretação
sistemática, devemos fazer referência ao art. 61, “f”, do Código Penal
que trata da agravante relativa ao fato de o crime ter sido cometido
“com violência contra a mulher na forma da lei específica”, ou seja, da
Lei Maria da Penha.
Vislumbramos, assim, um sistema no nosso
ordenamento jurídico que trata de criar normas penais
gênero-específicas e é com base nesse contexto que as normas que tratam
de criar situações particulares para as vítimas do sexo feminino devem
ser interpretadas.
b) menosprezo à condição de mulher
A morte em razão de menosprezo à condição de mulher é a segunda espécie de feminicídio trazida pela nova Lei.
Há menosprezo quando o agente pratica o
crime por nutrir pouca ou nenhuma estima ou apreço pela vítima,
configurando, dentre outros, desdém, desprezo, desapreciação,
desvalorização.
c) discriminação à condição de mulher
O Brasil é signatário da Convenção sobre
a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher
(CEDAW, 1979), ratificada em 1984.
Nela podemos encontrar a seguinte
definição de discriminação contra a mulher: “toda distinção, exclusão ou
restrição baseada no sexo e que tenha por objeto ou resultado
prejudicar ou anular o reconhecimento, gozo ou exercício pela mulher,
independentemente de seu estado civil, com base na igualdade do homem e
da mulher, dos direitos humanos e liberdades fundamentais nos campos
político, econômico, social, cultural e civil ou em qualquer outro
campo”. (Art. 1º)
Também é importante mencionar que a
proibição da discriminação contra a mulher e a adoção de sanções para os
casos de discriminação fazem parte de compromisso internacional
assumido pelo Brasil quando ratificou a CEDAW. Consta no Art. II do
documento internacional mencionado:
Artigo II. Os Estados Partes condenam a
discriminação contra a mulher em todas as suas formas, concordam em
seguir, por todos os meios apropriados e sem dilações, uma política
destinada a eliminar a discriminação contra a mulher, e com tal objetivo
se comprometem a:
[...]
b) Adotar medidas adequadas,
legislativas e de outro caráter, com as sanções cabíveis e que proíbam
toda discriminação contra a mulher;
Situações que configuram a
discriminação: matar mulher por entender que ela não pode estudar, por
entender que ela não pode dirigir, por entender que ela não pode ser
diretora de uma empresa etc.
II – Causas de aumento de pena previstas na Lei 13.104/2015
A nova Lei inclui mais um parágrafo ao art. 121 do Código Penal, nos seguintes termos:
Art. 121. [...]
Aumento de pena
[...]
§ 7° A pena do feminicídio (1) é aumentada de 1/3 (um terço) até a metade (2) se o crime for praticado:
I – durante a gestação (3) ou nos 3 (três) meses posteriores ao parto (4);
II – contra pessoa menor de 14 (quatorze) anos (5), maior de 60 (sessenta) anos (6) ou com deficiência (7);
III – na presença de descendente (8) ou de ascendente da vítima (9).
Alguns comentários sobre as causas de
aumento de pena, observando-se desde logo que o desconhecimento do
agente (= ausência de dolo) em relação a qualquer uma delas significa
erro de tipo, excludente do aumento da pena.
(1) Os requisitos típicos do feminicídio encontram-se analisados no item I, acima.
(2) A variação de 1/3 à metade deve
ser aplicada conforme cada caso concreto. Compete ao juiz valorar cada
situação concreta para dosar proporcionalmente o aumento. No caso da
gestação, quanto mais próximo do parto, mais aumento; quando mais perto
do parto já feito, mais aumento (até o limite dos 3 meses); quanto menos
idade, mais aumento; quanto mais idosa a mulher, mais aumento; na
deficiência, compete ao juiz valorar o grau da deficiência etc.
(3) A primeira causa de aumento
prevista pela nova lei (feminicídio praticado durante a gestação)
representa uma maior gravidade (e reprovação do fato) do fato e por
conta disso encontra-se totalmente justificada. No entanto, o agente
somente responde por ela se tinha conhecimento da situação de gestação
da vítima, podendo ocorrer erro de tipo caso não tivesse tal ciência.
(4) A causa de aumento de pena está
alicerçada na opinião de especialistas no sentido de que aos três meses a
criança está preparada para o desmame, já podendo ser alimentada por
meio da mamadeira (o que não significa que o aleitamento materno não
seja mais recomendável a partir desse lapso temporal).
(5) e (6) O próprio art. 121 do Código
Penal, em seu § 4º, já prevê um aumento de 1/3 nos casos de homicídio
praticado contra pessoa menor de 14 ou maior de 60 anos. O aumento
previsto para o feminicídio, no entanto, é mais severo, pois varia de
1/3 até metade. Prevalece, no caso, o aumento determinado no § 7º, pois
se trata de lei específica (princípio da especialidade).
Em nenhuma das hipóteses incidirá a agravante genérica prevista no art. 61, “h” do Código Penal, sob pena de bis in idem.
(7) As circunstâncias em que uma pessoa é
considerada portadora de deficiência podem ser encontradas no art. 4º
do Dec. 3.298/1999, que regulamentou a Lei 7.853/ 1989:
Art. 4º É considerada pessoa portadora de deficiência a que se enquadra nas seguintes categorias:
I – deficiência física – alteração
completa ou parcial de um ou mais segmentos do corpo humano, acarretando
o comprometimento da função física, apresentando-se sob a forma de
paraplegia, paraparesia, monoplegia, monoparesia, tetraplegia,
tetraparesia, triplegia, triparesia, hemiplegia, hemiparesia, ostomia,
amputação ou ausência de membro, paralisia cerebral, nanismo, membros
com deformidade congênita ou adquirida, exceto as deformidades estéticas
e as que não produzam dificuldades para o desempenho de funções;
II – deficiência auditiva – perda
bilateral, parcial ou total, de quarenta e um decibéis (dB) ou mais,
aferida por audiograma nas frequências de 500Hz, 1.000Hz, 2.000Hz e
3.000Hz;
III – deficiência visual – cegueira, na
qual a acuidade visual é igual ou menor que 0,05 no melhor olho, com a
melhor correção óptica; a baixa visão, que significa acuidade visual
entre 0,3 e 0,05 no melhor olho, com a melhor correção óptica; os casos
nos quais a somatória da medida do campo visual em ambos os olhos for
igual ou menor que 60º; ou a ocorrência simultânea de quaisquer das
condições anteriores;
IV – deficiência mental – funcionamento
intelectual significativamente inferior à média, com manifestação antes
dos dezoito anos e limitações associadas a duas ou mais áreas de
habilidades adaptativas, tais como:
a) comunicação;
b) cuidado pessoal;
c) habilidades sociais;
d) utilização dos recursos da comunidade;
e) saúde e segurança;
f) habilidades acadêmicas;
g) lazer; e
h) trabalho;
V – deficiência múltipla – associação de duas ou mais deficiências.
Vários são os tipos penais em que a pena
é agravada em razão da deficiência da vítima (lesão corporal, injúria,
frustração de direito assegurado por lei trabalhista, etc.).
Exige-se que o feminicida tenha
conhecimento da situação de portador de deficiência da vítima, sob pena
de não incidir a causa de aumento de pena (em virtude do erro de tipo).
(8) e (9) O crime, ao ser
praticado na presença de descendente ou ascendente da vítima, adquire
uma reprovação ainda maior, pois acarretará um trauma muito intenso para
o familiar que o assistiu; são marcas que, muitas vezes, acompanharam a
pessoa para toda a sua vida. Para configuração da causa de aumento de
pena não há necessidade da presença física no local dos fatos, bastando
que o “familiar esteja vendo (ex: por skype) ou ouvindo (ex: por
telefone) a ação criminosa do agente”.
Tal circunstância é objetiva, devendo dela ter conhecimento o agressor.
III – Feminicídio é crime hediondo
Art. 2° O art. 1° da Lei n° 8.072, de 25 de junho de 1990, passa a vigorar com a seguinte redação:
“Art. 1° [...]
I – homicídio (art. 121), quando
praticado em atividade típica de grupo de extermínio, ainda que cometido
por um só agente, e homicídio qualificado (art. 121, § 2°. I, II, III,
IV, V e VI);
O feminicídio é um crime hediondo. O
art. 2º da Lei 13.104/15 alterou o artigo 1º da Lei 8.072/90 (lei dos
crimes hediondos) para incluir nesse rol o homicídio qualificado do
inciso VI, do § 2º, do art. 121 do CP. Portanto, não há nenhuma dúvida
de que o feminicídio (não o simples femicídio: assassinato de uma mulher
fora do contexto da violência de gênero) é um crime hediondo.
Não se trata de um crime equiparado ao
hediondo (como são a tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e
drogas afins e o terrorismo), sim, é um crime formalmente hediondo.
Essa mudança legislativa (que entrou em
vigor no dia 10/3/15) só vale para crimes cometidos a partir dessa data.
Essa lei, por ser mais gravosa, não retroage.
A rigor, o feminicídio já poderia (e, em
alguns casos, já era) classificado como crime hediondo (homicídio por
motivo torpe, fútil etc.). Afinal, não há como negar torpeza na ação de
matar uma mulher por discriminação de gênero (matar uma mulher porque
usa minissaia ou porque não limpou corretamente a casa ou porque deixou
queimar o feijão ou porque quer se separar ou porque depois de separada
encontrou outro namorado etc.). Mas esse entendimento não era uniforme.
Daí a pertinência da nova lei, para dizer que todas essas situações
configura indiscutivelmente crime hediondo. Nos crimes anteriores a
10/3/15 o motivo torpe continua sendo possível. O que não se pode é
aplicar a lei nova (13.104/15) para fatos anteriores a ela (lei nova
maléfica não retroage).
A comprovação de uma violência de gênero exige prova inequívoca. Havendo dúvida, in dubio pro reo.
A motivação do delito constitui o eixo da violência de gênero. Uma vez
comprovada essa circunstância, não se pode mais invocar o motivo torpe:
uma mesma circunstância não pode ensejar duas valorações jurídicas (está
proibido o bis in idem).
Na praxe forense um aspecto sumamente
relevante será o do possível abuso acusatório (excesso na acusação), que
ocorre quando se força (sem a devida comprovação, com indícios sérios)
uma classificação de crime hediondo. Nem todo femicídio (morte de uma
mulher) é um feminicídio (morte de uma mulher por razões de gênero).
Essa confusão poderá ocorrer e para isso devem estar atentos a defesa e o
juiz. Compete à defesa, de plano, refutar (já na defesa preliminar) o
excesso acusatório. Ao juiz compete (quando não há prova nem sequer
indiciária da violência de gênero) rejeitar a denúncia parcialmente,
recebendo-a definitivamente com os expurgos necessários, por falta
absoluta de justa causa. A qualificadora do feminicídio tem que ter
justa causa específica (provas mínimas sobre esse ponto). Sem isso,
rejeita-se parcialmente a denúncia. Deixar essa tarefa para o momento da
sentença, quando se sabe da inexistência de justa causa, é uma anomalia
inqualificável (para além de uma tirania deplorável violadora da
dignidade humana). No sentido de que o juiz pode corrigir desde logo o
excesso acusatório veja RSE 200838000145850, Desembargadora Federal
Assusete Magalhães, TRF1 – Terceira Turma, E-DJF1 data:08/04/2011
pagina:165.
Na doutrina (consoante artigo de Sérgio Murilo Fonseca Marques Castro, Conjur), Nestor Távora e Rosmar Rodrigues Alencar alinham-se também a esse entendimento, conforme se transcreve in verbis:
“Acreditamos ser possível ao magistrado,
sem se imiscuir nas atribuições do órgão acusador, rejeitar
parcialmente a inicial acusatória. Nada impede que o juiz rejeite
parcialmente a inicial para excluir um ou alguns imputados, quando não
haja lastro probatório mínimo vinculando-os aos fatos. O mesmo
raciocínio pode ser seguido na hipótese de pluralidade de infrações
objeto de uma mesma denúncia, onde, em não havendo justa causa, algumas
podem ser excluídas. O mesmo se diga quanto às qualificadoras ou causas
de exasperação de pena” (Curso de Direito Processual Penal, 6. ed., Ed. Jus Podvm, p.191)
Os motivos que autorizam essa valoração
antecipada por parte do magistrado são de três ordens (pondera Sérgio
Murilo Fonseca Marques Castro, citado):
A uma, o princípio da economia
processual orienta seja evitada toda uma instrução processual
inexoravelmente fadada a um desfecho que poderia ter sido obtido desde o
início da ação penal;
A duas, conforme demonstrado, se hoje o
magistrado pode, inclusive, absolver sumariamente o acusado, dentro das
hipóteses do artigo 397 e incisos do Codex, é inarredável a
conclusão de que ele também pode, ao invés de proceder à absolvição
sumária, vir a corrigir a classificação jurídica apontada na denúncia ou
queixa, com todos os consectários processuais e penais daí resultantes,
pois quem pode o mais, pode o menos;
A três, mormente quando a classificação
legal errônea importar em vedação a benefícios processuais e materiais
do acusado, que se não fossem estes excessos ou impropriedades
acusatórias, poderiam ser desde logo usufruídos por aquele,
extinguindo-se ou suspendendo a ação penal.
Não é proporcional ou razoável seja
mitigado um direito do acusado de usufruir, desde logo, dos efeitos de
uma causa extintiva de punibilidade (pagamento do débito fiscal em
crimes contra a ordem tributária) ou mesmo de um benefício
despenalizador (conforme já exemplificado), a fim de se prestigiar a
premissa do monopólio da ação penal pública pelo Ministério Público, por
exemplo, uma vez que ambas as vertentes (direito ao devido processo
legal pelo acusado e monopólio da ação penal pelo Ministério Público ou
querelante) possuem majestade constitucional, devendo assim haver uma
convivência harmônica entre estes postulados constitucionais.
Na prática, o que significa “ser crime hediondo”?
Desde logo, que a pena será de 12 a 30
anos de reclusão. De outro lado, que ele não admite anistia (que se
concede por meio de lei), graça (que é o indulto individual concedido
por ato do Presidente da República) nem indulto (indulto coletivo,
também outorgado pela presidência da república, por meio de decreto – o
indulto natalino é o mais conhecido indulto coletivo).
Tampouco se admite fiança nos crimes hediondos (caso o agente seja preso em flagrante, não pode ser beneficiado pela fiança).
O regime inicial de cumprimento da pena
do feminicídio é o fechado. Normalmente essa determinação legal (da lei
8.072/90) não gerará nenhum problema porque a pena mínima desse
homicídio qualificado é de 12 anos (pena acima de 8 anos inicia-se em
regime fechado). Pode haver discussão quando se trata de crime tentado
(cuja pena é reduzida de um a dois terços) e caso a pena final não
ultrapasse oito anos. Desde o julgamento do HC 82.959 pelo STF há
entendimento no sentido de que a individualização da pena (e seu regime
de cumprimento) é tarefa do juiz, não do legislador. Logo, não estaria o
juiz impedido de fixar outro regime inicial na situação que aqui
estamos enfocando (desde que todas as condições sejam favoráveis ao
agente).
A progressão de regime, no caso dos
condenados aos crimes hediondos, dar-se-á após o cumprimento de 2/5
(dois quintos) da pena, se o apenado for primário, e de 3/5 (três
quintos), se reincidente. Sem o cumprimento de 40% da pena (ou 60%,
quando reincidente) não se opera a progressão de regime (normalmente do
fechado para o semiaberto). Na progressão em geral a lei exige o
cumprimento de apenas 1/6 da pena. Nos crimes hediondos a regra é
diferente.
A regra do § 3º do art. 2º da lei dos
crimes hediondos (“Em caso de sentença condenatória, o juiz decidirá
fundamentadamente se o réu poderá apelar em liberdade”) hoje já não tem
nenhum sentido (depois da reforma do CPP de 2008) porque o duplo grau de
jurisdição (o direito de apelar) não pode ficar condicionado à prisão. O
duplo grau é uma garantia internacional (prevista na Convenção
Americana de Direitos Humanos), que está acima da lei (conforme decisão
do STF no RE 466.343-SP).
A prisão temporária nos crimes hediondos
terá o prazo de trinta dias, prorrogável por igual período em caso de
extrema e comprovada necessidade. O livramento condicional, nesses
crimes, exige o cumprimento de mais de dois terços da pena (conforma o
disposto no art. 83, V, do CP).
A qualificadora do feminicídio é subjetiva ou objetiva?
A qualificadora do feminicídio é nitidamente subjetiva.
Sabe-se que é possível coexistência das circunstâncias privilegiadoras
(§ 1º do art. 121), todas de natureza subjetiva, com qualificadoras de
natureza objetiva (§ 2º, III e IV). Quando se reconhece (no júri) o
privilégio (violenta emoção, por exemplo), crime, fica afastada,
automaticamente, a tese do feminicídio (posição de Rogério Sanches, que
compartilhamos). É impossível pensar num feminicídio, que é algo
abominável, reprovável, repugnante à dignidade da mulher, que tenha sido
praticado por motivo de relevante valor moral ou social ou logo após
injusta provocação da vítima. Uma mulher usa minissaia. Por esse motivo
fático o seu marido ou namorado lhe mata. E mata por uma motivação
aberrante de achar que a mulher é de sua posse, que a mulher é objeto,
que a mulher não pode contrariar as vontades do homem. Nessa motivação
há uma ofensa à condição de sexo feminino. O sujeito mata em razão da
condição do sexo feminino. Em razão disso, ou seja, por causa disso.
Seria uma qualificadora objetiva se dissesse respeito ao modo ou meio de
execução do crime. A violência de gênero não é uma forma de execução do
crime, sim, sua razão, seu motivo. Por isso que é subjetiva.
Para não confundir:
1) femicídio: morte de uma mulher
2) feminicídio: morte de uma mulher por razões de gênero (por discriminação ou menosprezo à condição de sexo feminino)
3) uxoricídio: assassinato em que o marido mata a própria esposa
4) parricídio: assassinato pelo filho do próprio pai
5) matricídio: matar a própria mãe
6) fratricídio: matar o próprio irmão
7) ambicídio: quando as mortes decorrem de um pacto.
Quando a qualificadora do feminicídio incidir, restará prejudicada a
incidência da agravante genérica do art. 61, II, “f”, parte final, do
CP, sob pena de bis in idem vedado pelo art. 61, caput, do CP.
Fonte:http://institutoavantebrasil.com.br/feminicidio-entenda-as-questoes-controvertidas-da-lei-13-1042015/
muito bom o post. consegui absorver o conteúdo nele exposto .
ResponderExcluirQue bom! Fico contente que tenha gostado. É realmente um tema intrigante ainda nos dias de hoje.
ExcluirEscrito pedagógico, linguagem acessível, embora técnica, elucidador. Muito bom, gostei!
ResponderExcluirQue bom que tenha gostado. E convido a vasculhar ao máximo esse nosso espaço. Espero que goste de todo o conteúdo.
ExcluirEste texto está publicado no Jusbrasil, autoria do Prof. Luiz Flávio Gomes.
ResponderExcluirSim, o texto é de autoria do prof. LUIZ FLÁVIO GOMES e da Dra. ALICE BIANCHINI, assim como eu responsavelmente registrei quando disponibilizei a fonte, no fim da postagem.
Excluirgostaria de fazer meu pré projeto de monografia e a mesma baseada nesse assunto "feminicidio" e se pudesse juntamente com a lei maria da penha, tem alguma dica ou sugestão de um bom tema?
ResponderExcluirO crime de femicidio e contra a mulher no ambiente familiar e doméstico como no feminicídio?
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